quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Cangaíba

Rua Roiz Barros, em São Paulo. Morei nessa casa à esquerda, número 202
(Foto: Lucas Conrado)


A praça, onde eu sempre pegava o ônibus para casa, é bem menor do que eu lembrava. Quase a metade do tamanho que, as minhas lembranças de criança, tinham registrado. Mas as lojas de roupas baratas continuam ali.

Nos nove anos que não passo ali, o bairro da Penha, na Zona Leste de São Paulo pouco mudou. O mesmo formigueiro humano nas calçadas, o mesmo fluxo interminável de carros e ônibus. Algumas lojas resistem, outras mudaram, mas a essência do bairro continua.

Um pouco depois, o ônibus cruzava o Terminal da Penha e a rua Gabriela Mistral (hoje, ao contrário da época que eu morava ali perto, sei que ela era uma poetisa chilena, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura), descia o morro por onde desci milhares de vezes e subia aquela ponte, quase uma rampa, que cruzava a Tiquatira, para pegar a Avenida Cangaíba. Uma curva, duas curvas, três curvas. A agência dos Correios continua ali. A Escola Caetano Mieli também. O laboratório, onde fiz exame de sangue numa manhã de 1998 que minha mãe me contava o que era "Impeachment", hoje é um escritório de advocacia. Surpreso, vejo a Igreja do bairro e puxo o sinal do ônibus. Desço na frente da escolinha de futebol.

É a primeira vez, em oito anos, que volto a pisar no Cangaíba, bairro simples da Zona Leste de São Paulo onde cresci. Vivi ali perto por doze anos, até ser pego de surpresa por uma notícia que mudaria a minha vida. Ainda me lembro do dia em que a minha mãe atendeu ao celular e confirmou a notícia: íamos embora para o Rio de Janeiro.

Para que meu irmão e eu aceitássemos a notícia com menos resistência, acredito que meus pais mentiram. "Vai ser rápido", diziam. "Vamos ficar no Rio só por um ano e daqui a pouco vamos voltar para São Paulo". Um ano se transformou em dois, três, quatro, e foram se passando até completar nove anos. Nove anos no Rio, nove anos sonhando com a volta às origens. Nove anos lembrando da igreja do Cangaíba bem maior que ela é realmente (tal qual a praça na Penha). Nove anos sem ver o curso Skill, onde comecei a fazer o inglês no longínquo 2001 e que hoje é um grande local abandonado, a espera da próxima locação.

Continuo andando pela Avenida Cangaíba, olhando ao redor. A lojinha de 1,99, onde comprei diversos dos meus bonequinhos (piratas) do Star Wars continua ali, firme e forte. A loja de sapatos, onde a minha mãe comprou o meu segundo bichinho virtual também está ali. Gente, o Bazar Silvina também está aberto! Com as mesmas panelas e artigos para casa pendurados no telhado e as mesmas tranqueiras dentro da loja. Eu nem lembrava que essa loja existia!

Desço a Miguel Garcia. A mesma rua por onde passei milhares de vezes, sonhando com o dia que estudaria em Oxford, um sonho há muito enterrado. Ali embaixo está um dos lugares que mais gostaria de visitar, a barbearia do André.

É sábado, um pouco depois do meio-dia. Será que ela está aberta? Está. Será que o André ainda trabalha ali? Vamos perguntar. O outro barbeiro, não o reconheço de cara, me diz que o André saiu para almoçar e já deve estar voltando. Boa notícia! Ele não foi embora! Cresci cortando o cabelo ali. Foi ali que comecei a gostar do cabelo arrepiado, quando o André e minha mãe me diziam que era o cabelo do Dunga, capitão da Copa de 94 e um dos treinadores mais injustiçados da história da Seleção Brasileira. Será que ele se lembraria de mim? Iria descobrir dali a pouco.

Saio do salão. O terminal de ônibus continua ali. A barraquinha de cachorro quente, a melhor de São Paulo, também está ali e com a mesma vendedora! Que pena que meu café da manhã foi tão reforçado. Queria comer um cachorro quente, mas meu corpo não deixa. Talvez seja melhor deixá-los guardados na lembrança. Do outro lado da praça, uma igreja adventista e o Reino Encantado, escolinha onde meu irmão fez a pré-escola. O açougue onde minha mãe sempre comprava carnes e verduras ainda existe, assim como o mercadinho ao lado, onde uma vez, compramos um catchup sem marca tão ruim, mas tão ruim que ele era roxo (???).

Na mesma calçada onde estou, alguns metros a frente, uma padaria na esquina e, à sua frente, uma banca de jornais. As duas existiam desde a época em que eu vivia ali. Essa padaria está na esquina da Miguel Garcia com um dos lugares mais importantes da minha vida, uma descida bem alta e esburacada que atende pelo nome de Rua Roiz Barros.

Lá embaixo, perto da (Escola) Cecília Meirelles, há uma vizinhança, formada por sete ou oito casinhas que já foram iguais. A terceira casinha de cima pra baixo, o número 202, é a minha antiga casa, onde vivi durante 14 anos. Na época, eu achava uma casa pequena. Hoje, morando nesses apartamentos do Rio de Janeiro, a acho um palácio. A casa, na verdade, é um sobrado. Mas falemos dela daqui a pouco.

Estou morto de ansiedade para descer a Roiz Barros. Mas, pretendo não subi-la novamente nessa viagem. Como queria falar com o André, decidi adiar a ida à minha antiga casa e fui ver uma das três escolas onde estudei. A Escola Estadual de Primeiro Grau Annita Guastini Eiras. Caminho por alguns minutos, até chegar numa rua estreita, que desce o morro. A rua é tão estreita que mal tem espaço para dois carros passarem. À direita, diversas casas, sem calçada na frente. À esquerda, um muro verde, que já foi branco. Do outro lado do muro, a escola onde estudei da primeira à terceira série. Se eu fosse escrever todas as lembranças que aquela rua me despertaram, eu deveria escrever um blog só sobre isso. Fico com a minha mãe me dizendo que estaria em uma daquelas casas, esperando eu sair da escola. Ela me falava isso para eu parar de chorar. Fico também com a lembrança do coitado do vendedor de balas na frente da escola. Digo "coitado" porque rolava uma lenda que traficantes colocavam drogas nas balas e as distribuiam na frente de escolas públicas. E eu morria de medo de comprar balas na banquinha desse cara. 

A escola está fechada. Não consigo ver o pátio, as grades, nem mesmo o muro que quase me matou, em um acidente imbecil no meu último dia de aula. Com uma sensação engraçada no peito, tomo o caminho de volta.

Volto para a praça na Miguel Garcia. Volto à barbearia do André e vejo, lá dentro, um cara de cabelos grisalhos, da minha altura e meio parrudo. Apesar de lembrar dele com o cabelo bem preto, não tem como confundir. É o André! Ele me cumprimenta animado, diz que, quando me viu chegando, se lembrou de mim. Comenta da marca que tenho na cabeça, resultado de um acidente que tive na escola que acabei de visitar. Conversamos, contamos as novidades. Depois de nove anos sem cortar meu cabelo, ele fica sabendo que fui embora para o Rio de Janeiro. Eu, feliz, fico sabendo que ele continua ali. Continua bem e com saúde.

Chegou o grande momento. Desço a Rua Roiz Barros. Ainda me lembro das casas, das poucas lojinhas naquela rua residencial, das pessoas que viviam ali. Não vejo nenhum rosto conhecido. Ali embaixo, o bar do Seu Osmar se transformou num salão de cabeleireiros. O bar da Dona Mercedes continua, mas com outra pessoa (na verdade já não era mais dela, quando eu morava lá). Até o orelhão na frente do bar está ali, o orelhão onde meus pais sempre iam ligar para Minas, num tempo que telefone em casa era um luxo para poucas pessoas. Atravesso a rua Hugo Wolf e paro na frente daquelas casinhas que falei lá em cima. Meu coração se aperta de saudade ao ver a casa número 202, do outro lado da rua.

O sobrado continua lá, firme e forte. Mudaram a fachada, substituindo as pedrinhas cinzas de quando minha família morava lá por um azulejo. A porta de madeira do meu quarto, no andar de cima, foi trocada por uma porta de vidro. O balaústre da laje se transformou numa grade de ferro. Mas o portão continua lá. A parede de tijolos também. O meu murinho, onde eu brincava com os carrinhos e pulava para brincar com o Luiz Fernando, meu vizinho que hoje mora em Curitiba, continua lá também. A torneira do segundo andar que refrescava nos verões mais quentes, o registro de água e o relógio de luz também. Detalhes da casa que já estavam esquecidos, mas que voltaram com força.

Não me atrevi a atravessar a rua. A casa tem novos moradores, moradores que, inclusive, estavam na garagem. Fiquei de longe, observando, me lembrando de todos aqueles anos que passei ali. Antes que a saudade me matasse, botei a mochila nas costas e continuei descendo a Roiz Barros. Até encontrar meus amigos na frente de outra das escolas onde estudei (foram três, na verdade), ainda havia outro lugar que eu precisava visitar.

Cheguei em outra rua estreitinha do bairro. Nessa, só passa um carro. No meio das casas, há uma verde, muito especial para mim. Ali era a Sementinha Mágica, escola onde fiz o Jardim 2 e a Pré Escola, entre 1994 e 1995. Tinha "passado" ali pelo Google Street View e não havia identificado qual casa era. Estando ali presencialmente, não tinha como me confundir.

Não existia mais sinal da escolinha. O muro estava pintado de verde e um portão alto, de metal, me impedia de ver lá dentro. Feriado de Sete de Setembro, acho que os donos da casa estão viajando. Tomei o rumo para o Engenheiro Goulart, mas passei na frente de uma vendinha, onde minha mãe sempre comprava lanches para mim e para o meu irmão. Olho para o dono do bar e ele me olha. Na hora, não lembrei seu nome, mas era ele, o Seu Biba. Parei, comecei a conversar com ele. Disse a ele que ia ali sempre em meados de 1994 com a minha mãe e ele me disse que eu era familiar. Não sei se ele falava a verdade, mas ficamos conversando por alguns minutos. Até que ele me contou algo importante: A Tia Simone, minha primeira professora e dona do Sementinha Mágica, continuava morando na casa onde funcionou a escola.

Com o coração disparado, volto à casa verde e toco a campainha. Ninguém atende. Momentos depois, um cachorro começa a latir e surge um senhor, que me pergunta quem eu sou. "Meu nome é Lucas, fui aluno da Simone", respondo. O senhor entra e, momentos depois, surge uma mulher no portão. Eu não consigo acreditar, é ela!

A vida é cheia de momentos emocionantes. Mas poucos são tão emocionantes quanto reencontrar sua primeira professora, 17 anos depois de se formar. Aliás, reencontrar sua primeira professora três semanas depois da sua formatura na universidade. Você se forma numa federal e volta ao lugar onde tudo começou, quando você era uma criança chorona de cinco anos de idade! Pena que hoje não sou tão chorão, porque, se eu fosse, estaria debulhando em lágrimas. A Tia Simone, depois de trocar de roupa, abre o portão e me recebe com um forte abraço e muitos beijinhos. Me sinto querido, de uma forma que me senti poucas vezes na vida. Ela "lamenta" por eu não ser mais aquela criança que ela carregava no colo e me leva para dentro da casa. A salinha onde foi minha primeira classe, hoje é uma sala de TV. A outra salinha, de brinquedos, virou uma espécie de copa. A cozinha, onde a gente lanchava continua lá, com os mesmos ladrilhos azuis. O berçário, onde víamos a TV Cultura se transformou no quarto do pai da Tia Simone. Ficamos ali, sentados na cozinha por quase uma hora, contando os rumos que nossas vidas tinham tomado. As coisas mudaram um bocado nos últimos 17 anos... Mudaram bastante mesmo. Mas uma coisa continuou: o carinho de uma professora por seu aluno e de um aluno por sua primeira professora.

Por mim, eu ficaria ali o dia inteiro. Mas precisava continuar a caminhada. Meus amigos estavam me esperando. Troco contatos com a Tia Simone, tiro uma foto com ela, pego minha mochila e continuo a caminhada...

Primeira professora a gente não esquece. Eu e a Tia Simone!

Deixo Cangaíba para trás mais uma vez. Deixo a vizinhança onde cresci, deixo as lojinhas da minha infância, deixo a padaria, a banca de jornal, a barbearia, a barraquinha de cachorro quente. Deixo para trás mais uma vez a minha casa, minhas escolas e minha primeira professora.

Mais importante que tudo. Deixo novamente mais um pedaço importante da minha alma.

Lucas Conrado

4 comentários:

Célula Tatuapé 2 disse...

Muito legal!! O Cangaíba é um bairro especial. Compartilho do mesmo saudosismo. Abs.

Célula Tatuapé 2 disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Lucas boa tarde, lendo seus comentários, deixei escorrer lagrimas dos meus olhos, nasci e me criei na rua professor Carlos da Silveira, de onde me mudei em 2005, após me casar e 2008 meus pais também se mudarm de lá e acabei cortando por completo o cordão umbelical, uma vez que os poucos amigos que tinha também se espalharam. Mas são excelentes recordações. A barbearia do André foi do pai dele, eles chegaram a trabalhar juntos e depois de falecido seu pai, este continuou, o açougue que se refere, é o do Zé, não sei se ainda é o dono, mas era ele, a padaria que vc citou fora inaugurada no fim da década de 90, com o nome de MJN e apelidada de mijona, de frente e na esquina tinha a venda do seu Antônio, descendo um pouco na esquina da rua 8 era uma papelaria. Dentre outras coisas de lá, além da farmacia do seu Valter, falecido em um assalto, esta era em frente a viela e depois mudou-se para o lado do escadão. Seu relato é maravilhoso e precisamos caminhar para frente, mas sem nunca esquecer nossas origens. Parabens e muito obrigado por me proporcionar este momento de nostalgia.

Unknown disse...

Lucas boa tarde, lendo seus comentários, deixei escorrer lagrimas dos meus olhos, nasci e me criei na rua professor Carlos da Silveira, de onde me mudei em 2005, após me casar e 2008 meus pais também se mudarm de lá e acabei cortando por completo o cordão umbelical, uma vez que os poucos amigos que tinha também se espalharam. Mas são excelentes recordações. A barbearia do André foi do pai dele, eles chegaram a trabalhar juntos e depois de falecido seu pai, este continuou, o açougue que se refere, é o do Zé, não sei se ainda é o dono, mas era ele, a padaria que vc citou fora inaugurada no fim da década de 90, com o nome de MJN e apelidada de mijona, de frente e na esquina tinha a venda do seu Antônio, descendo um pouco na esquina da rua 8 era uma papelaria. Dentre outras coisas de lá, além da farmacia do seu Valter, falecido em um assalto, esta era em frente a viela e depois mudou-se para o lado do escadão. Seu relato é maravilhoso e precisamos caminhar para frente, mas sem nunca esquecer nossas origens. Parabens e muito obrigado por me proporcionar este momento de nostalgia.