terça-feira, 26 de julho de 2022

Do pneu furado ao pesadelo

Publiquei esse texto originalmente no Portão 1, em 26 de outubro de 2020



- Com sua atenção, senhoras e senhores, gostaríamos de convidá-los para o embarque do voo Avianca Star Alliance 6216, com destino a Brasília…

Com esse anúncio, os passageiros se reuniram em frente ao portão para o último voo da companhia que partiria do Galeão naquela noite. Tudo na mais perfeita normalidade. A gente já estava aliviado, tinha dado tudo certo naquela noite. Iríamos fazer o embarque daquele último voo, que decolaria as 21h30. Às 22 horas, bateríamos o cartão e pegaríamos o ônibus/BRT/metrô pra casa. Nada mais normal, nada mais rotineiro… até o mecânico subir a bordo do avião e conversar com o comandante. O comando desceu até o pátio e, verificando o que o mecânico havia mostrado, chamou um dos nossos colegas de terra pra cabine de comando. E deu a notícia. Foi verificado um desgaste acima do normal em um dos pneus da aeronave. Ele precisaria ser trocado.

Quanto tempo de atraso? Meia-hora? Uma hora? Aí que morava o problema: a companhia não tinha mais pneus sobressalentes de A320 no Galeão. Nossa esperança era ter o tal pneu no Santos Dumont. Se a equipe do SDU não tivesse, o que era um atraso incômodo poderia se transformar num cancelamento que entraria na madrugada… É… coisas de aeroporto. O fim do expediente às 22 horas não aconteceria.

Enquanto esperávamos a resposta do pessoal do Santos Dumont, começamos a nos programar para a contingência. Na melhor das hipóteses, o pneu chegaria rapidamente. Precisaríamos fazer o desembarque dos passageiros para a manutenção, mas tudo seria resolvido rapidamente. Talvez, o pneu demorasse a chegar, então começamos a preparar os vouchers de alimentação. Mas, para o caso de o voo ser cancelado, já haviam alguns funcionários ligando para a cooperativa de taxi do aeroporto e para alguns hotéis da cidade, já pré-reservando os quartos para os 140 e tantos passageiros daquele voo.

Depois de algum tempo de espera, a boa notícia. O Santos Dumont tinha o pneu que poderia ser substituído no nosso A320. A má notícia é que a gente não sabia quanto tempo demoraria para o pneu chegar. Mas não seria tão rápido assim. Alguns colegas foram mandados aos restaurantes, para já pedirem pra preparar a refeição para os clientes. Eu recebi uma missão diferente: havia uma menor desacompanhada no voo. A supervisora me pediu para ligar para a mãe da garota (que a esperava em Brasília) e avisar que o voo atrasaria.

Como dar essa notícia? Como ligar para a mãe de uma criança, que certamente estava preocupada com a criança voando sozinha, sem matar a mulher do coração? Como falei em um dos meus últimos textos, as pessoas morrem de medo de voar. Eu sabia que na hora que me apresentasse, antes mesmo de explicar o que havia acontecido, a mãe entraria em desespero, imaginando que eu estivesse avisando que o avião caiu… Com esse pensamento, cheguei na nossa sala, peguei o telefone e disquei para Brasília. E com a voz mais calma e animada possível, falei:

– Boa noite, senhora, tudo bem? A senhora é a mãe da Fulana? Então, meu nome é Lucas, eu trabalho na Avian…

E antes que eu pudesse terminar de falar, a mãe entrou em desespero, chorando e perguntando o que tinha acontecido com a filha dela.

– Não, senhora, calma! Sua filha está bem. Ela está jantando neste momento, porque o avião teve de trocar o pneu, mas ela está bem, eu juro. Só vai chegar um pouco atrasada em Brasília. Quando o avião decolar, te ligamos com o horário previsto do pouso.

Coitada… não condeno a mãe da garota. Mas eu ainda era novato de aeroporto, não sabia ao certo como falar com ela. Enfim, mãe mais calma e informada que a filha chegaria em Brasília no meio da madrugada, ouço a supervisora me chamar no rádio. Bora apagar o segundo incêndio da noite.

Ela me pediu para voltar com urgência para o portão de embarque. Eu deveria acompanhar uma passageira que havia desistido daquela viagem, para que a gente pudesse fazer a remarcação do voo dela sem custo. Olha, pela legislação vigente na época, aquilo só poderia ser feito depois de quatro horas de atraso (ainda estávamos na primeira hora). Havia algo de errado…

Havia algo de muito errado…

Assim que cheguei no portão, vi uma passageira de costas, conversando com meus colegas. A supervisora, ao me ver chegar, me puxou num canto e falou:

– Lucas, eu preciso que você descubra o que aconteceu.

– Sobre…?

– Essa passageira começou a gritar no meio do avião que não viajaria no mesmo voo que o cara que estava sentado ao lado dela. E o cara estava todo sem graça, pedindo desculpas. Ela não quis contar o que aconteceu… Descobre pra nós?

– Ah… tá… descubro…

Pela primeira vez, os 600 metros, três andares de descida e três andares de subida que separavam a sala de embarque do Terminal 1 e nossa loja no Terminal 2 nos ajudaria. Bora voltar a praticar a antiga profissão de jornalista, né?

Enquanto voltávamos, as coisas mais terríveis passavam pela minha cabeça. No mínimo, havia acontecido um assédio sexual naquela aeronave. Era a única justificativa, na minha cabeça, para a passageira ter uma reação daquelas. Por outro lado, ela não parecia tão abalada. Sendo homem, eu nem consigo imaginar o que as mulheres passam em relação a assédios, cantadas e outros tipos de violência. Mas, ela não parecia tão abalada. Eis que, no meio do caminho, ela olha pra mim e fala.

– Você me garante que, se o voo for cancelado e vocês forem remarcar o voo de todo o mundo, vocês não vão me colocar no mesmo avião que o passageiro que estava do meu lado?

Olhei pra ela surpreso. OK, havia surgido a brecha. Tentando confortá-la, eu disse:

– OK, vou passar a situação para a loja…

Antes que eu pudesse perguntar qualquer outra coisa, ela me diz:

– Sabe, eu tenho muito medo de voar.

– Olha, senhora, eu entendo que as pessoas tenham medo, mas a senhora pode voar tranquila, os aviões são perfeitamente seguros…

– Sim, sim, eu sei… Mas morro de medo… Mas, mesmo com medo, eu acabo tendo que voar a trabalho. Tento me distrair. O problema é quando acontece tipo o que aconteceu hoje.

– O que houve?

– Eu já tava preocupada porque o avião entrou em manutenção. De repente, o passageiro que tava do meu lado virou para mim e fez o seguinte comentário: “Dois anos atrás, eu sonhei que estava num voo da Avianca que caía. E é a primeira vez que voo na Avianca”.

Ótima notícia. Não foi assédio sexual. O medo que eu estava sentindo se transformou numa mistura de curiosidade e incredulidade. Olhei para a passageira querendo ouvir o restante da história. Ela prosseguiu

– Aí o meu medo veio com tudo. Mas, ainda tentando manter a calma, tentei pesquisar mais sobre o tal sonho. Perguntei para ele se o sonho era durante o dia ou durante a noite e ele me disse que era de noite. Aí ele me perguntou em que assento eu estava. Respondi “22C”. E ele me disse: “é, no meu pesadelo, eu tava no assento 22B do avião que caía”. Aí eu não aguentei. Eu comecei a gritar que não voaria no mesmo avião que ele e ele começou a pedir desculpas! Por favor, não me coloquem no mesmo avião que ele!

Eu não sabia como reagir àquela história. Ao mesmo tempo que eu queria rir do completo absurdo da situação, eu respeitava o medo da mulher e queria trazer algum conforto a ela. Estava completamente aliviado por não ter acontecido nenhum crime a bordo, porém perplexo com a total falta de noção do outro passageiro ao falar um absurdo tão grande para uma completa estranha. Eu duvido que ele tenha tido o tal pesadelo com o acidente aéreo da Avianca. Pra mim (e pra minha supervisora, quando contei a história para ela), ele era apenas um engraçadinho que queria fazer uma piada de gosto bem duvidoso.

Leitor, não faça comentários com queda de avião dentro de um avião. Especialmente se for com um desconhecido. Você não faz ideia do que seu comentário pode despertar na pessoa ao seu lado.

Ah e o pneu chegou depois da 1 da manhã. O avião decolou depois das 2 e pousou em Brasília com segurança naquela madrugada. Nos 17 anos que a Avianca Brasil voou, nunca houve um acidente fatal. E o único acidente que houve foi o pouso de um Fokker 100 (ou MK-28, coincidentemente em Brasília), no qual o avião teve dano estrutural, mas ninguém se feriu gravemente.

Lucas Conrado

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